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Nova Proposta para a Supressão da Era Cristã – por Elisee Reclus
Nova Proposta para a Supressão da Era Cristã – por Elisee Reclus

Nova Proposta para a Supressão da Era Cristã – por Elisee Reclus

Apresentamos um texto do anarquista Elisee Reclus, inédito em português, publicado originalmente em 1905 na revista francesa Les Temps Nouveaux, traduzido agora especialmente por membros da Biblioteca Terra Livre para o bate papo anti-natal dia 09 de dezembro na Kasa Invisível. Reclus foi um importante geógrafo anarquista, da Comuna de Paris e da Primeira Internacional dos Trabalhadores, autor de O Homem e a Terra. Foi também amigo de Piotr Kropotkin, o célebre escritor de obras como Apoio Mútuo e A Conquista do Pão, que também conta com um texto especial sobre sua relação com o Natal, a ação direta e seu remoto parentesco com São Nicolau, o russo conhecido por ser Papai Noel original.

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Algumas almas simples imaginam que um projeto de lei para a separação entre a Igreja e o Estado contém a solução para os problemas do futuro, em relação à verdadeira emancipação do espírito humano.

Isso não é verdade. Os senhores da Câmara e os senhores do Senado podem debater por sessões inteiras e votar a favor ou contra milhares de emendas, mas a situação permanecerá sempre a mesma; pois o Estado e a Igreja têm uma única e mesma ambição, e podemos dizer que eles se confundem essencialmente pelos seus princípios. Ambos desejam conquistar a autoridade absoluta.

Conhecemos a Igreja através de Gregório VII, de Inocêncio III, dos Concílios de Trento e das inquisições de todas as formas, católicas e protestantes; não basta a ela possuir as almas, ela também quer controlar os corpos; ela não se contenta apenas com as crenças, ela também quer os bens.

Quanto ao Estado, ele sem dúvida deseja moldar os cidadãos em escravos, pretende controlá-los por meio de impostos, leis e regulamentações íntimas e intrusivas; no entanto, ele também tem a pretensão de ditar a moral e reinar sobre as consciências. Os catecismos são equivalentes, decorados com a Cruz ou a Bandeira.

Portanto, cabe a nós, os revoltados, arruinar simultaneamente a autoridade concebida pelas pessoas da Igreja e pelos serviçais do Estado; devemos nos tornar livres. Livres de qualquer crença em milagres; livres de todo raciocínio que reduza nossas ideias à concepção de um senhor absoluto e nossas ações à prática da obediência tradicional; precisamos realmente ingressar em uma sociedade nova, onde toda força vital seja atribuída às individualidades pensantes e ativas, e à sua associação autônoma em centros de energia renascentes.

Somos nós mesmos que devemos nos separar do Estado e que precisamos nos separar da Igreja, atribuindo às instituições do passado apenas um valor histórico.

Assim, tanto para a questão da Igreja quanto para a do Estado, a política atual tem para nós apenas um interesse puramente externo; a verdadeira evolução ocorre dentro de nós. Até que ponto conseguimos nos livrar de toda superstição religiosa, especialmente das sobrevivências cristãs? A linguagem contém uma série de expressões que derivam de uma crença primitiva em milagres: estamos nos esforçando para nos livrar delas e substituí-las por formas verbais e por frases que tenham um valor real em sua concordância com a razão? Quantas vezes em nossas conversas somos surpreendidos com palavras como “criação do homem”, “palavra do Evangelho”, “bela moral cristã” e, sobretudo, quantas vezes somos trazidos de volta pela divisão do tempo – semanas, feriados, meses, anos, séculos, era geral – às absurdas concepções cristãs! O que é mais desprovido de bom senso do que a seriação dos eventos em duas categorias opostas, a dos fatos que supostamente ocorreram antes do presumido nascimento de Jesus Cristo, supondo que ele tenha realmente vivido, e a classificação dos fatos que ocorreram posteriormente a esse mesmo nascimento? Segundo este método absurdo, todos os pontos da história são classificados de acordo com uma data puramente hipotética, seguindo dois intervalos contraditórios: um decrescente até zero, o outro crescente desse mesmo zero até os dias atuais. Um sistema duplo de numeração, funcionando em direções opostas, que inevitavelmente confunde a compreensão, gera um caos mnemônico que leva, na maioria das mentes, à ignorância final: não se busca mais conhecer uma classificação que se que sabemos de antemão destinada a ser rapidamente esquecida. E pensar que agora há nas escolas cem milhões de crianças que são obrigadas a engolir esse amontoado de uma cronologia dupla, que divide o reinado de Augusto, por exemplo, em duas partes, do ano 29 ao ano zero, e do ano zero ao ano 14! É necessário somar uma série de mais (+) com uma série de menos (-)!

Entre as eras que foram sucessivamente adotadas pelos povos, certamente não há nenhuma que seja tão ridícula e tão contrária a um estudo sério da história.

Pelo menos compreendemos a era dos judeus que partiram corajosamente do que acreditavam ser o começo do mundo, de acordo com seus livros sagrados. É verdade que, de acordo com diferentes copistas, cuja nomenclatura não era a mesma, atribuíram a essa criação da terra datas diferentes em torno de mil anos, mas o princípio estava preservado. A maioria dos outros povos naturalmente contava as eras a partir do período em que começavam seus próprios registros. Os caldeus e os egípcios partiam da fundação de Babilônia ou de Mênfis; os gregos tinham a série dos jogos nacionais celebrados em Olímpia; e os romanos mediam sua existência pela da cidade que ainda hoje chamamos de “Cidade Eterna”.

Evidentemente, é necessário retornar a um método que esteja de acordo com a razão. Não basta ocultar a origem eclesiástica da cronologia das escolas, dando-lhe o nome de “era comum” ou “era vulgar” em vez de chamá-la de “era de Nosso Senhor”. Assim, tem-se buscado ardentemente nos tempos mais antigos, ainda lembrados pelo homem, um fato inicial que abranja toda a sequência de eventos que constituem nossa história. No entanto, é preciso dizer que a obscuridade dos documentos disponíveis para os historiadores não lhes permite chegar a um acordo sobre a data precisa de eventos relativamente próximos do nosso tempo, como os que precederam as Guerras Médicas e os conflitos entre Roma e Cartago; uma dúvida ainda muito maior paira quando se trata de eventos que certamente ocorreram e que a tradição coloca de maneira mais ou menos vaga nas eras anteriores ao florescimento de sua cultura no Egito e na Mesopotâmia. Para esses fatos, as estimativas variam de centenas e até milhares de anos. Qualquer era que parta de um desses fatos de data incerta daria, portanto, origem a discussões incessantes e, antecipadamente, deve ser rejeitada como tendo um caráter hipotético.

Portanto, não é na conjuntura dos eventos terrestres, mas nos movimentos celestes que devemos procurar uma era inicial a partir da qual possamos classificar todos os eventos da história humana com suas datas, as primeiras mais ou menos conjecturais, as segundas já mais aproximadas e as demais constatadas e controladas pela comparação das crônicas.

Aqui, precisamos apenas seguir os estudos dos cientistas que decifraram as escrituras cuneiformes. Convém, a partir de agora, adotar a era científica a partir da qual a história simplesmente classificará a série de fatos, sem que a memória dos alunos fique desordenada, em homenagem a Jesus Cristo, por duas cronologias se desdobrando em direções opostas. Assim, partindo do primeiro eclipse reconhecido, a construção do Partenon dataria do ano 11.004; a descoberta da América pelos normandos corresponderia ao ano 12.542, e estaríamos atualmente em 13.447. Além disso, é óbvio que, agora que os estudos devem ser sérios em nossas escolas, a cronologia sinóptica só servirá para estabelecer de maneira geral a sucessão de todos os eventos do mundo, mas que cada história dos povos, tendo tido sua evolução particular no tempo e no espaço, deve ser estudada na época de sua vida específica, durante a duração dos séculos a que pertence. Cada país, China, Índia, Grécia, Roma, França, Inglaterra, aparecerá em seu tempo, na sucessão geral do ciclo humano.

Estou bem ciente de que uma proposta, como a que apresento aos nossos amigos, só pode ter valor se corresponder a um desejo popular; se o desejo de conhecimento e simplificação do estudo penetrar profundamente nas massas das nações consideradas civilizadas, não há dúvida de que essa questão será acolhida, discutida, resolvida e dará origem a uma verdadeira revolução intelectual; pois a supressão de um absurdo em favor da verdade merece muito bem esse nome.

Já no século XVI, um erudito chamado Joseph Scaliger havia resolvido a questão de maneira análoga, mas seu trabalho foi considerado apenas um exercício intelectual; depois, em 1892, o excelente Gabriel de Mortillet, o geólogo anticristão, propôs uma reforma cronológica não muito diferente, mas dirigida aos acadêmicos, que se limitaram a sorrir de seu zelo iconoclasta.

É evidente que não teremos a ingenuidade de apresentar nosso desejo, sob a forma de petição, a alguma academia erudita; sabemos já com muita antecedência qual seria sua recepção. As academias existem para conservar piedosamente as coisas do passado; para honrar as antiguidades e mantê-las com seu cheiro de antiguidade. São as academias que defendem o antigo idioma do grande século contra todas as invasões da linguagem moderna; é apesar delas que todas as novas palavras foram criadas, todas as construções literárias que correspondem às descobertas e transformações do pensamento, às paixões da vida. Portanto, estou falando aqui apenas aos meus companheiros em revolta, que, por meio de sua ação direta, não apenas desejam estabelecer uma nova sociedade, mas que também querem dar a ela toda uma decoração artística correspondente e um quadro científico livre de todas as formas antiquadas das antigas religiões. O tempo das escolas revolucionárias e da ciência emancipada já chegou, e confiamos nos jovens decididos a cortar finalmente o cordão que nos ligava à religião da servidão e do milagre.

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