Ocupação anticapitalista, autônoma e horizontal localizada em Belo Horizonte
 Uma Casa Ocupada é uma Casa Encantada – trecho do livro
 Uma Casa Ocupada é uma Casa Encantada – trecho do livro

 Uma Casa Ocupada é uma Casa Encantada – trecho do livro

O artigo a seguir faz parte do livro “Casa Encantada: Um Retrato da Luta pela Moradia em Belo Horizonte“, de Renato Baruq, publicado em 2024 pela GLAC Edições.

Por meio de entrevistas a ocupantes, ilustrações das fachadas de casas, fotografias, considerações de especialistas convidados e uma longa apresentação e reflexão final, Baruq retrata vividamente a realidade das ocupações de moradia em Belo Horizonte, bem como a história de luta por um habitar digno na cidade. Aborda também o contexto social que levou à formação dessas e destaca a importância delas na resistência contra a desigualdade antes, durante e depois da pandemia de COVID-19. Um exercício militante e artístico dos desafios enfrentados quanto à resiliência e à determinação na luta por habitação digna.

Leia a apresentação do autor para o livro que conta também com prefácio de Thiago Canettieri, artigo de Clarissa Campos e fotografias de Cadu Passos.

Uma Casa Ocupada é uma Casa Encantada

Somos los duendes que habitan en las casas abandonadas,
La propiedad privada es un robo, y lo nuestro arte de magia.
Una casa okupada es una casa encantada,
Cuando haya un desalojo, aparecemos en otra.
El hechizo está en hacerlo todo con tus propias manos,
Convirtiendo cuatro muros en espacios liberados.

– Sin Dios
Casa Okupada, Casa Encantada

Yo soy el error de la sociedad,
soy el plan perfecto, que ha salido mal.

– Agarrate Catalina
La Violencia

O projeto deste livro surgiu dentro da Kasa Invisível, ocupação de moradia e centro social anticapitalista operante desde 2013 em Belo Horizonte (BH), da qual sou membro e morador. A proposta é fazer um breve retrato de um momento particular da luta por moradia em nossa cidade. Este é também apenas mais um esforço, dentre muitos, que membros do coletivo e a comunidade em torno da Kasa Invisível desenvolvem com outras ocupações de BH, promovendo a solidariedade entre esses espaços, seus habitantes e os movimentos que atuam junto a eles.

Buscando formas de documentar e transmitir o momento em que rapidamente surgiram dezenas de novas casas ocupadas para moradia em nossa vizinhança, convidei o amigo e fotógrafo Cadu Passos para um passeio de bicicleta por quase 20 imóveis na região central, fotografando as fachadas deles, sua vida e algumas pessoas que ali habitam. A partir de suas fotos, criei uma ilustração para cada casa. 

Para além de qualquer fetiche arquitetônico ou que busque algum valor patrimonial por casas antigas, há o desejo de compartilhar as impressões, os dramas e as histórias das pessoas que se unem para partir para a ação e lutar pelo básico: um espaço para poder existir. Pessoas de diferentes trajetórias ousaram desafiar a sacralidade da propriedade privada e ocupar esses pedaços de chão, paredes e teto para habitá-los e preenchê-los de vida. Vida que deseja, sonha e se move – com alguma beleza, mesmo que torta e rasurada – como a fachada das casas que ocupamos e chamamos de lar. 

***

Invisível e fora dos planos 

O que é a cidade? É o contrário de mata. O contrário de natureza. A cidade é um território artificializado, humanizado. A cidade é um território arquitetado exclusivamente para os humanos. Os humanos excluíram todas as possibilidades de outras vidas na cidade. Qualquer outra vida que tenta existir na cidade é destruída. Se existe, é graças à força do orgânico, não porque os humanos queiram.

– Nego Bispo, A terra dá, a terra quer

Belo Horizonte foi a primeira cidade moderna planejada do Brasil. Fundada em 1897, seu desenho urbano expressa os ideais da jovem república instaurada apenas 8 anos antes por um golpe militar que destituiu o Império: vias amplas, retilíneas, racionalmente projetadas para facilitar a circulação e o higienismo, inviabilizar a aglomeração, os bloqueios, os protestos e as barricadas. Passando por cima e retificando até mesmo o curso dos rios, o novo modelo contrastava com as estreitas e sinuosas ruas de pedra da antiga capital do estado, Ouro Preto, abertas conforme a necessidade, como todas as cidades formadas em torno da exploração do trabalho escravo na extração de ouro, prata e demais minerais e produtos agrícolas.

A Avenida do Contorno, originalmente chamada de Avenida 17 de Setembro, continha todo o projeto e demarcava os limites entre o urbano e o suburbano. As principais ruas desenham quadrados perfeitos: num sentido, aquelas com nomes dos estados da federação, no outro, as ruas com nomes dos povos indígenas exterminados ou expulsos dos territórios sobre os quais se ergue qualquer cidade nas Américas. Cortando na diagonal, ficam as avenidas com nomes de figuras políticas ou de “notáveis”, como aqueles que projetaram a nova capital mineira: Afonso Pena, Augusto de Lima, Olegário Maciel, Bias Fortes, dentre outros.

Desde cedo, a realização da nova capital se dava pela abrupta transformação do espaço, obliterando qualquer coisa ou pessoa no caminho. Além de um rico bioma de encontro entre Mata Atlântica e Cerrado, a construção de Belo Horizonte precisou remover o antigo povoado conhecido como Curral del Rey e seus quase mil e quinhentos habitantes. Muitos deles foram desalojados sem aviso-prévio ou indenização. O caso mais simbólico é o da senhora que se tornou uma das primeiras e mais tradicionais lendas da cidade: Maria Papuda (apelido pejorativo devido à sua aparência, por sofrer de bócio), mulher negra e pobre que, até 1894, habitava a região em um modesto barraco de pau a pique, próximo de onde foi erguido o Palácio da Liberdade, a sede oficial do governo do estado de Minas Gerais até 2019. Dona Maria teria lançado maldição sobre os futuros ocupantes do palácio após ser forçada a se mudar de seu barraco sem qualquer reparação. O fato de que na década seguinte dois governadores tenham morrido no imóvel apenas reforçou a lenda, que diz também que o fantasma de Maria Papuda ainda assombra o local.

Os trabalhadores pobres que construíram a cidade não foram considerados como possíveis habitantes e não contaram com nenhum espaço previsto para eles no plano inicial. Muitas dessas pessoas ocuparam ilegalmente terrenos próximos do Centro, criando as primeiras favelas e ocupações belo-horizontinas (como a Vila Córrego do Leitão, criada antes ainda da inauguração oficial da cidade). Quando a prefeitura emite decretos e manda a polícia remover essas casas a partir de 1900, inicia-se uma disputa contínua pela qual o poder público busca permanentemente afastar os pobres do centro da cidade, sem nunca conseguir higienizá-lo por completo. Essa disputa é constitutiva da história de BH.

Os mesmos processos se perpetuam até hoje, 126 anos depois, quando a malha urbana já extrapola muitas vezes os limites do seu projeto original e não é capaz de abrigar de forma decente nem seus habitantes, nem sua vegetação, nem seus rios. Com apenas 3,9% de sua superfície ainda coberta por vegetação, BH é a cidade que tem a menor cobertura verde das 10 maiores capitais do país. Em 2019, a cidade contava com 56 mil famílias sem casa própria (alugando ou morando de favor). Além disso, 95,7 mil famílias vivem em casas inapropriadas, ou seja, sem esgoto, teto ou água. Dados do Censo 2022 mostram que 5,3 mil pessoas vivem nas ruas, sem um teto para se abrigar, enquanto 108 mil imóveis permanecem desocupados – número 20 vezes maior que a população sem-teto. 

Quando a pandemia da Covid-19 chegou ao Brasil, em 2020, seus impactos tornaram ainda mais gritantes as mazelas que atingem as pessoas mais pobres, privadas de acessar o básico, como educação e seguridade social, e até mesmo de portar documentos de identidade ou certidão de nascimento. No entanto, contrastes ficaram mais nítidos quando o mandamento “fique em casa” não foi aplicável para quem não tinha casa. Tampouco seria saudável para quem se aglomera com familiares em barracos e habitações precárias, sob risco de desabamento ou sem saneamento básico. Ocupar imóveis vazios se torna, em momentos como esse, uma questão ainda mais urgente para a sobrevivência.

Naquele ano de 2020, um número recorde de cerca de 100 mil pessoas viviam em ocupações somente em Belo Horizonte, e o estado de Minas Gerais chegou a ter o segundo maior déficit habitacional do país, com 500 mil famílias sem-teto. No centro da cidade, tornou-se visível o aumento de 22% da população em situação de rua, recém-chegada devido à crise econômica deflagrada pela pandemia e pelas políticas de morte do governo federal.

De forma diferente dos movimentos de luta por terra e moradia estabelecidos e mais estruturados, que organizam e planejam com antecedência o surgimento de uma nova ocupação, movimentos novos como o MLP surgiram da demanda de organizar e construir solidariedade com ocupações que nasceram espontaneamente da auto-organização de pessoas sem-teto. Após a ocupação, que não é necessariamente planejada pelo movimento, militantes do MLP e de coletivos apoiadores, como a Kasa Invisível, juntam-se para buscar apoio material, social e jurídico para que as ocupações permaneçam.

Casas históricas, esquecidas num limbo legal entre a especulação e o abandono, tornaram-se lares numa nova onda de ocupações que surgiu para disputar e conquistar a moradia e demais direitos básicos que não são acessíveis sem um teto sobre a cabeça. Ocupações espontâneas, muitas surgidas no improviso, da noite para o dia, sem apoio de grandes movimentos ou entidades sociais, foram se organizando e, com o tempo, construindo redes, conforme as necessidades imediatas. Outras surgiram como fruto do desenvolvimento dessa forma de organização, abrigando parte da população com trajetória de rua, egressa do sistema prisional, imigrante, precarizada e excluída.

Essas iniciativas autônomas vêm na contramão de um refluxo das ocupações de prédios e de grandes territórios, as quais marcaram as décadas de 2000 e 2010. Uma transição da ação direta para a “ação” parlamentar foi marcante e produziu consequências quando muitos dos movimentos de moradia foram freados pelas lideranças dos movimentos – que já são ou se tornam também lideranças partidárias – que escolheram se juntar à onda de restauração democrática de sua década para “ocupar a política” institucional, dos gabinetes, seus cargos e orçamentos. Processo semelhante vimos fracassar na Espanha, com o Podemos, e na Grécia, com o Syriza. Isso refletiu em esvaziamento e recuo da luta direta e em abertura de novas ocupações, ao mesmo tempo em que a demanda por moradia digna seguia aumentando.

Como diria o velho hino punk espanhol, “uma casa ocupada é uma casa encantada”. Nem o fascismo, nem a covardia de tendências reformistas são capazes de frear a necessidade de construir o apoio mútuo e partir para a ação direta para solucionar os problemas de quem sofre as dores do capitalismo. Para seguir lutando por um mundo em que a propriedade não valha mais que a vida, é preciso seguir encantando e nos deixando encantar pela esperança de construirmos novos espaços e relações – e não apenas nos deixar seduzir pelo canto da sereia que torna espíritos revolucionários em meros militantes por profissão, funcionários da política institucional em busca de verbas de fundos partidários, cargos, prestígios pessoais.

E foi como fruto dessa busca por refúgio, em meio à tempestade política e à virulência (literal e metafórica) de um governo alinhado ao conservadorismo fascista e de uma gestão de morte, que surgiram as ocupações que ilustram esta publicação. Quando a estratégia hegemônica da esquerda era “esperar o fascismo derreter por si só”, aguardando que as eleições funcionassem como a vacina para uma pandemia, antifascistas tomaram as ruas e excluídos de diferentes contextos partiram para a ação direta, ocupando casas e lutando por seus direitos. É porque estivemos lá, com outras pessoas que não sabem nem podem esperar, que contamos hoje estas histórias.

* * * 

Nosso lugar no mapa e no conflito social

A globalização do capitalismo teve por efeito fragilizar, pauperizar e marginalizar largas franjas das classes populares. Face às ‘desordens locais’ que daqui resultam em violência, incivilidade e insegurança, os poderes públicos põem a funcionar dispositivos de ’pacificação’ para os quais o urbanismo e a arquitetura são chamados a contribuir.

A reconfiguração do espaço público deve, ao mesmo tempo, dissuadir o novo ‘inimigo interno’ de passar à ação e facilitar a repressão, confirmando assim a ligação entre o urbanismo e a manutenção da ordem social.

– Jean-Pierre Garnier, Um espaço indefensável

A ocupação Kasa Invisível fica no encontro entre a Avenida Bias Fortes, a Rua dos Guajajaras e a Rua Santa Catarina, formando uma esquina em forma de asterisco, salpicada de edificações históricas que já chegaram a ter cinco casas ocupadas durante a pandemia da Covid-19. Hoje, quatro delas ainda resistem, no último quarteirão do Bairro Lourdes, considerado “nobre” e com um dos metros quadrados mais caros da cidade.

A Avenida Bias Fortes tem cerca de dois quilômetros e meio de comprimento, começando na Praça da Liberdade, onde fica o Palácio da Liberdade, atravessando a icônica Praça Raul Soares e seguindo na direção norte até a Avenida do Contorno. Ali, a Av. Bias Fortes se torna Viaduto Helena Greco – antigo Viaduto Castelo Branco –, passa por cima tanto da Avenida do Contorno quanto da linha do trem e segue para os bairros da região noroeste.

A região da Praça Raul Soares, da qual a Kasa Invisível faz parte, foi onde ocorreram as primeiras ocupações de terrenos por trabalhadores pobres, ainda nos primórdios da história da cidade. Desde as primeiras remoções realizadas no início do século XX, as elites tentaram diversas vezes higienizar e policiar a Praça Raul Soares e o seu entorno, enquanto ela se consolidou como fronteira entre uma BH burguesa, gentrificada, e um hipercentro popular, comercial, percorrido por trabalhadores informais e pessoas em situação de rua – todos os corpos que a cidade sonhada pelas elites busca invisibilizar ou eliminar.

Nossa Kasa se situa, portanto, na fronteira entre dois mundos ligados por uma linha reta de asfalto: em um extremo, um complexo arquitetônico e cartão-postal da cidade que inclui o antigo palácio sede do governo do terceiro maior estado do país – onde decisões que afetam diretamente nossas vidas são tomadas – ; no outro, um viaduto que serve de abrigo para pessoas em situação de rua, rodeado por pontos de reciclagem de sucata, bocas de crack, onde gente excluída da sociedade tenta sobreviver revirando lixo, comendo o que encontra, aquecendo-se com cachaça barata e outras substâncias para esquecer o que não se pode mudar. Imagens de um céu e de um inferno que sempre nos lembram que estamos geográfica e socialmente muito mais próximos dos de baixo do que daqueles no topo.

Essa oposição territorial não é a única coisa que passa despercebida nesse pedaço de chão que percorremos e ocupamos há uma década. Aliás, toda a cidade está cheia de pontos cegos que deixamos escapar no passo automático da rotina. No caminho que liga o viaduto dos desabrigados ao palácio dos governantes, passamos por castanheiras e ipês que anunciam a chegada da primavera. Com alguma atenção, é possível ver também pés de amora, abacate, goiaba, manga e mamão entre postes e placas. Se subimos a avenida sentido Praça da Liberdade, cruzamos a Rua São Paulo, que esconde, debaixo do asfalto, sepultado vivo entre manilhas e pedras, o Córrego do Leitão, que nasce no Bairro Santa Lúcia e cruza ruas e avenidas até chegar à Avenida dos Andradas, onde também está parcialmente encoberto o Rio Arrudas. Nos dias de chuva intensa de verão, agravadas pelo caos climático, os rios se rebelam contra sua invisibilidade forçada, retornando à superfície e fazendo das ruas adjacentes seus afluentes, carregando tudo o que há no seu caminho. Assim, as ruas São Paulo, Tupis e Padre Belchior tornam a ser vias fluviais – mesmo que temporárias –, revirando o chão, levando lama e entulho para as sofisticadas ruas do bairro de Lourdes e do baixo Centro.

* * *

Os registros rabiscados e as histórias escritas neste livro são tentativa de transbordar nossos caminhos, como fazem os rios sufocados de nossa metrópole, ou as ervas rachando o asfalto e o concreto inertes, para trazer à superfície um cotidiano de conflitos e de luta pela existência. Essa é minha humilde contribuição para a memória das lutas que travamos, registrada pelo olhar e pelas vozes de tantas companheiras e companheiros. Que esta mensagem se propague para além do tempo, que nossa solidariedade não respeite fronteiras, cercas, muros ou as letras frias da lei e dos tratados internacionais sobre direitos meramente simbólicos, para que, como Dona Maria Papuda e todos os povos escravizados, explorados, excluídos e despejados, possamos seguir nos organizando, revidando e tomando de volta o que é nosso, assombrando os sonhos dos que se autoproclamam governantes e donos dessas terras.

Nós éramos da rua. Nossa profissão foi a revolução. Foi tudo que fizemos. Não tínhamos emprego, não éramos estudantes, tudo que fizemos foi radical. Uma militância radical. Verdadeiramente permanente. De manhã à noite, todos os dias. Dávamos comida de graça às pessoas, tínhamos um apartamento (que chamávamos de ‘sala de jantar’) onde as pessoas podiam ficar sem pagar. Também tínhamos roupas disponíveis. Tudo que fazíamos era de graça.

– Ben Morea, Up Against the Wall! Motherfuckers

Sobre o que ficou de fora: a maior parte dos conflitos fundiários em Belo Horizonte

A escolha por retratar com ilustrações e fotografias, acompanhados de artigos e entrevistas sobre as ocupações e seus habitantes, vai além de gosto pessoal pelo desenho e por projetos gráficos ou arquitetônicos. Como comprova o trabalho do fotógrafo Enrique Metinides, que registra acidentes e cenas de crimes com olhar quase cinematográfico, um modo sensível e subjetivo de registrar eventos do cotidiano tem o potencial de perdurar. Se jornais ou panfletos envelhecem e perdem impacto com o tempo, tornando-se documentos que interessam apenas a pesquisadores, trabalho artístico pode ser estratégia de produzir registro atemporal. Com o desenho, busco olhar e refazer o que é retratado e convidar os sujeitos a percorrer comigo essas linhas rabiscadas e escritas.

Busquei inspiração direta em outras obras, como o livro Antes que acabe, de João Galera, que ilustra dezenas de casas antigas na mira da especulação imobiliária que destrói e reconfigura constantemente a cidade de São Paulo. Porém, mais importante do que as fachadas de casas históricas, acho importante investigar a vida e as histórias de resistência que atravessam esses espaços.

Uma vez reunida, essa coleção de relatos e registros de 20 casas ocupadas em Belo Horizonte pode parecer, para um olhar de fora da cidade ou não familiarizado com as lutas por moradia e terra, como parte de grande tendência ou de modelo predominante de ocupação urbana na região. Na realidade, são uma amostra muito particular de um momento e um cenário específicos, inseridos num contexto muito mais amplo.

Como já foi colocado, mais de 100 mil pessoas vivem em quase 80 ocupações, incluindo as de prédios, casas e terras somente na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Se colocadas em perspectiva, 20 casas antigas, com algumas dezenas – ou mesmo centenas — de ocupantes, são parcela muito pequena, bem menos de 1%, do número de pessoas vivendo em ocupações na nossa cidade. Representam evento raro e digno de nota, pela sua força e por suas conquistas mesmo num contexto tão desfavorável. Mas é preciso ressaltar que o cenário de luta fundiária em que nos situamos é muito maior e mais complexo do que este livro pode contar. 

Ao escolhermos retratar casas residenciais antigas abandonadas que se tornaram ocupações de moradia ou centros comunitários, deixamos de fora outras ocupações parceiras tão importantes quanto. É o caso do Espaço Comum Luiz Estrela, que leva o nome de um emblemático artista de rua morto misteriosamente durante o mês de junho de 2013. O espaço foi ocupado em 2013, no calor dos levantes que tomaram o país naquele ano, contra os custos do transporte, tornando um antigo hospital militar e sanatório infantil num centro de cultura e política anticapitalista, anticolonial, abrigando teatro, cozinha comum, ações permaculturais, música e outras atividades. Importa mencionar, igualmente, a Ocupação Anita Santos, iniciada em 2018, quando cerca de 20 famílias ocuparam um terreno da companhia estatal de trens e ferrovias. Ela também é organizada pelo MLP, que organiza ações como a Cozinha Comunitária e distribui, em parceria com o Movimento da População de Rua e com a Pastoral de Rua, centenas de refeições grátis semanalmente. O MLP organiza uma dúzia de ocupações de casas e terrenos em Belo Horizonte e região, incluindo o prédio de 8 andares da ocupação João e Maria, no município de Contagem. A Ocupação Vicentão, surgida, em 2018, dos movimentos Brigadas Populares, da Associação Morada de Minas Gerais, da Associação dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte (Amabel) e da Intersindical, contava com 90 famílias. Foi desalojada em 2020, com a promessa de que os moradores teriam direito a auxílio para pagar aluguel, porém o acordo nunca foi cumprido e muitos moradores voltaram às ruas, somando-se aos que ocuparam as casas aqui retratadas, muitas delas organizadas junto ao MLP. 

Na região central da cidade, destacam-se algumas grandes ocupações, como a Pátria Livre, surgida em 2017 quando 13 famílias de moradoras da Pedreira Prado Lopes, a mais antiga favela de BH, organizaram-se junto ao Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) para ocupar e criar, em um galpão e um terreno, uma moradia e centro cultural, que conta até mesmo com padaria popular. A Ocupação Carolina Maria de Jesus, organizada pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), surgida num antigo prédio público na Avenida Afonso Pena, hoje abriga 200 famílias num prédio de 15 andares, na Rua Rio de Janeiro, no coração da cidade. O MLB também organiza a Ocupação Maria do Arraial, na Rua da Bahia, ocupada em 2023.

É preciso salientar, entretanto, que as maiores ocupações em termos de território e habitantes não são as ocupações verticalizadas, de prédios na região central, mas as ocupações horizontais, de terrenos ociosos que são ocupados e se tornam verdadeiros bairros da cidade, onde os movimentos e moradores são responsáveis pela urbanização, abrindo vias, construindo estruturas para redes de esgoto e elétrica.

Na virada da década de 2000 para 2010, houve tendência em diminuir a ocupação de prédios nas áreas centrais e focar a ocupação de terrenos periféricos, para evitar a repressão, apostar na autoconstrução dos imóveis pelos ocupantes e criar novos territórios populares. São exemplos a Ocupação Camilo Torres, de 2008, no Bairro Barreiro, abrigando 140 famílias, e a Ocupação Dandara, que surge no Bairro Céu Azul em 2009, com 150 famílias que partiram para a ação direta no mesmo ano em que o governo PT criava o programa de habitação popular Minha Casa, Minha Vida. Hoje, cerca de 2.500 famílias residem no local. 

Surgida em 2012, a Ocupação Eliana Silva também se mantém ativa, com 350 famílias organizadas novamente pelo MLB. Quando a ocupação surgiu, ficou sitiada por viaturas da Polícia Militar que impediam a entrada de pessoas, mantimentos e auxílio médico. Depois de uma tentativa de remoção, as famílias retomaram outro terreno próximo. O descaso das autoridades era visível também quando se negavam a autorizar a ligação de água para a região, e só cederam quando moradores se organizaram e sequestraram um caminhão da COPASA, empresa estatal de água. Outra importante ocupação de território, organizada pelo MLB, é a Ocupação Paulo Freire, no Bairro Barreiro. Ocupada em 2015, resiste abrigando cerca de 200 famílias. Próximo da região central, podemos citar a Ocupação Vila Fazendinha, iniciada em 2019 por moradores da Vila Esperança, favela no bairro Calafate. Cerca de 30 famílias ocuparam um terreno ocioso do Estado e logo ergueram casas, horta e espaço para criação de cavalos. A Vila Fazendinha é organizada com apoio do Movimento Organização de Base (MOB-MG), movimento de luta por moradia, independente de partidos e outras instituições. O MOB também esteve atuante desde o início da Ocupação Guarani Kaiowá, em 2013, em Contagem, bem próximo de Belo Horizonte. Foi mais uma ocupação de terreno impulsionada pelas lutas de 2013. 

Dentre outros exemplos de ocupações e disputas por terra em Belo Horizonte e região, encerramos com o maior conflito fundiário das Américas: a ocupação da chamada Região da Izidora surge também em 2013, composta pelas ocupações Esperança, Helena Grego, Rosa Leão e Vitória. Juntas, são compostas por 8 mil famílias, num total de 28 mil pessoas, distribuídas em área de cerca de 10 km² no norte de Belo Horizonte. 

Não podemos deixar de mencionar os Quilombos (ou Kilombos) urbanos que compõem área importante na luta por território para morar, praticar sua cultura e seu modo de vida. Belo Horizonte tem oficialmente cinco quilombos urbanos: Manzo Ngunzo, Souza, Luízes, Mangueiras, Kaiango e a Irmandade Os Carolinos.

* * *

O contexto amplo da luta por moradia, por terra e por território no Brasil é tão grande quanto as dimensões continentais do país e tão antigo quanto a guerra de dominação que os portugueses travaram ao chegar na costa brasileira para moldar os próximos 500 anos de exclusão e extermínio dos povos originários e africanos. 

Para ficar somente na história recente, do período chamado de “democrático”, notamos que o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) ainda é considerado um dos maiores movimentos sociais do mundo. Completando 40 anos em 2024, ele tem cerca de 1,3 milhão de membros e assentados em territórios organizados pelo movimento.

O MST surgiu no fim da Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985), como parte de amplo movimento pela redemocratização e pela garantia de direitos básicos. O direito à moradia teve destaque nessas movimentações. Com a nova Constituição de 1988, que inaugurou o período democrático atual, foi estabelecida por lei a “função social da propriedade”, isto é, seu uso para moradia, produção de alimentos e benefício da coletividade. Acumular terras para mera especulação passou a ser “um desrespeito à lei” e ocupar para dar uso social a pessoas sem terra ou casa passou a ser algo reconhecido como direito perante a Justiça. Essa abertura permitiu que a luta por meio da ação direta de ocupar tivesse também êxito nas disputas legais. Isso tem efeitos positivos nas estratégias dos movimentos, desde o início do MST até as lutas das ocupações de casas e prédios na nossa década. 

Por outro lado, a sacralidade da propriedade privada se mantém viva e estará acima de tudo para grande parte dos juízes e legisladores, especialmente para as classes proprietárias e seus jagunços dentro e fora das polícias. A luta por terra no Brasil é extremamente violenta e mata dezenas de camponeses, ambientalistas, quilombolas e indígenas anualmente. As agências de inteligência estatais, como a ABIN, as escolas militares e suas doutrinas seguem as mesmas desde a Ditadura, pregando que “o inimigo do Brasil é interno”, ou seja, os camponeses, os indígenas, os sem-teto e o traficante de drogas – se for pobre, negro e morador das periferias. 

Desse modo, celebramos este pequeno registro como pequena parte de grande luta. Enquanto isso, seguiremos nos organizando, lutando, construindo a solidariedade, pelo fim da propriedade privada e de seu mundo.

Baruq é ilustrador, escritor e editor. Como organizador, vive na ocupação Kasa Invisível, em Belo Horizonte, Brasil. Ele também é membro como editor da infoshop 1000contra.

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