Avançamos na metade da primeira semana da tour da Kasa Invisível e lançamento do livro “Casa Encantada” em Vitória, no País Basco. Já de início diríamos que se a turnê terminasse agora já teríamos conhecido tantas pessoas, espaços, movimentos e lutas que encheriam páginas e páginas. Vitória é uma linda cidade do século XII, com inúmeras construções conservadas interagindo com belíssimos murais e ocupações. Isso quando o próprio espaço histórico não é ele mesmo uma okupa. Há uma parte da cidade que é cheia de bares, okupas, centros sociais, rádio, projetos, dentre outras coisas, em um clima muito politizado que mantém viva a luta do povo Basco por sua memória, cultura, língua (eus̺kaɾa) e forma de vida contra o poder estabelecido.
Fomos muitíssimos bem recebidos na ocupação Errekaleor, na periferia da cidade. São 32 blocos de prédios com lindos grafites; há também uma antiga igreja que agora é o espaço de eventos, bar e local de assembleias; um enorme ginásio com pistas de skate, espaço para lutas, pelota e escalada; um centro cívico que abriga uma biblioteca, espaço para as crianças e aulas de eus̺kaɾa; há também uma horta comunitária; um atelier de serigrafia; uma oficina de conserto e montagem de bicicletas; uma loja grátis com roupas.
A história de Errekaleor começa com o conjunto habitacional nos limites da cidade para trabalhadores de uma fábrica próxima na década de 60, chegando a 1000 pessoas. Por décadas o bairro afastado foi diminuindo de moradores enquanto a cidade ia se aproximando. A prefeitura começou a comprar apartamentos com a intenção de destruir os prédios e construir habitações mais caras. Em 2008 só haviam 6 casas com moradores que haviam se recusado a sair de seu bairro, com a crise de europeia e a escassez de dinheiro a prefeitura desiste de seu projeto, logo o espaço de vários blocos começam a ser depenados. A partir de 2013 começam a ocupar os apartamentos e o moradores antigos remanescentes veem com bons olhos os jovens que colocam janelas e portas. Uma primeira assembleia é chamada e começa a se organizar a ocupação.
Os princípios de Errekaleor são: assembleísmo, feminismo, anticapitalismo, autogestão e eus̺keɾa (ou seja, preservação e divulgação do idioma e cultura basca). A ocupação se organiza através de Lantalles, como são chamados os grupos de trabalho. Alguns exemplos são o grupo sobre a Energia, trabalhando para fornecer uma melhor energia para a ocupação com placas de energia, principalmente depois que a alguns anos a prefeitura cortou o fornecimento. O grupo de infraestrutura, responsável por obras e reparações, assim como cada bloco cuidará de seu bloco. O grupo que organiza a horta comum. O grupo destinado ao Ginásio e suas atividades. O grupo da Comunicação Euskera, que fornecem aulas a comunidade. A Lantalde de homens, assim como o grupo de mulheres, responsável em repensar questões de gênero. O grupo de memória, que está organizando as histórias da ocupação. E também o grupo de economia que lida com as finanças do coletivo (cada morado contribui com 10 euros ao mês, grande parte da verba da ocupação vem das festas e venda de álcool, antes tentaram com a venda de pães e repensam sobre esse modelo). Há um grupo de acolhimento das pessoas em situação de risco e também um grupo que dá as boas-vindas e recebe as novas pessoas entrando. Por fim há a Coordenação, que junta todos os grupos na semana e é um espaço de decisão. Vão representantes de cada grupo que tiraram pontos para assembleia, criam a ordem do dia. Assembleia reúne a cada das duas semanas. As atas são impressas na gráfica da ocupação e são colocadas em as casas. Tudo isso demonstra a potência de Errakaleor, com seu senso de comunidade e auto-organização, ligando a vida em comunidade com as lutas de Vitória e também de todo mundo (há um enorme grafite sobre a revolução curda, por exemplo). Nossa própria turnê contou com a solidariedade da ocupação, que em assembleia deliberou em contribuir com o crowndfunding.
Ficamos hospedados em um dos blocos, inteiramente dedicado a visitantes e nossa atividade começou ao final da tarde na velha igreja (hoje nossa igreja predileta), local das assembleias gerais do espaço. Lá falamos da Kasa Invisível e do livro para as pessoas que vivem na ocupação. O grande interesse e duvidas centraram-se na relação com as pessoas em situação de rua, com outros movimentos sociais e principalmente como a vizinhança.
Queremos agradecer muitíssimo a toda Errekaleor pela maravilhosa acolhida e oportunidade de trocas. Agradecemos também Yuritz pela paciência e empenho em nos mostrar toda a ocupação, sua história, falar sobre a estrutura organizativa e principalmente pelo contexto da luta basca e a importância da euskara. Também Dayane pela recepção e deliciosa comida. Não conseguiríamos fazer essa viagem sem agradecer a Vero e Garazi que nos visitaram no Brasil e convidaram-nos a ir a Vitória, por tudo isso e mais, muito obrigado!
Nosso segundo dia (03/04) de eventos em Vitória começou com uma caminhada pelo centro antigo da cidade. São construções de séculos, mas que recebem murais, abrigam ocupações, empreendimentos sociais e culturais. Uma região muito politizada onde vimos MUITAS bandeiras da palestina, de independência basca e de anistia aos prisioneiros políticos da luta de independência Basca. Em uma padaria, por exemplo, vimos cartazes do protesto contra a especulação imobiliária.
Na parte da tarde fomos a Rádio Hala Bedi, uma rádio livre comunitária fundada em 1983. Hala Bedi e todos os movimentos radicais de Vitória foram muito influenciados pela dura repressão em um grande protesto de estudantes e trabalhadores de 1976, no fim do regime ditatorial franquista, onde 3 pessoas foram mortas pelas forças repressivas. Isso acabou fortalecendo na cidade formas mais libertárias, assemblarias, horizontais e sem líderes. Uma forma de organização que inspira a criação e modo de organização da rádio a partir de assembleias. A influência também contracultural e punk faz com que desejem ocupar as ondas de rádio e colocam antenas nas partes velhas da cidade. Tudo isso fez com que a rádio fosse reprimida pelo Estado e sua polícia. Depois de muitos anos de luta, a rádio está legalizada com mais de 30 programas, fazendo parte e sendo retransmitida por uma rede de rádios bascas. Nas palavras do companheiro que nos entrevistou: “somos expressão do movimento, se ele está forte, a rádio também está”. Em nossa entrevista falamos da Kasa e do livro, com destaque para a situação do conflito fundiário e territorial no campo e cidade do Brasil, além da nossa ligação com outros movimentos. Importante dizer que a Hala Bedi conta também com um bar e que nos forneceu um almoço muito gostoso!
No fim da tarde, falamos na livraria Liburotopia, um espaço muito lindo, que conta com um café e uma pequena sala para falas. Tudo de muito bom gosto e que é gerido por um coletivo associado, não deixando a desejar a nenhum espaço chique nas grandes cidades brasileiras.
Conhecemos também uma iniciativa de redução de riscos e conscientização sobre o uso de substâncias chamada Ai Lakett!!, que age através do conhecimento, ludicidade e testes das procedências das drogas.
Agradecemos a rádio e bar Hala Bedi, a livraria Liburutopia, ao Ai Lakett!! e novamente a Garazi e Vero e toda comunidade de Errekaleor por nos ajudarem nessa viagem.