Nosso sexto evento (05/04) da turnê do livro “Casa Encantada” foi em Barcelona no lendário Can Vies, um centro social autogerido ocupado de 1997 e muito inspirador. O espaço está situado em uma antiga construção de 1879 (sim, o prédio tem 145 anos!), inicialmente como moradia, depois para trabalhadores do metrô, por fim, foi coletivizado por trabalhadores da CNT na Guerra Civil Espanhola. Na década de 90 o prédio foi ocupado. Ainda que tenham sofrido diversos processos ao longo dos seus anos, foi em 2014 que o espaço sofreu sua maior ameaça. A Câmara Municipal de Barcelona ordenou um despejo e apesar de horas de resistência parte do edifício foi destruída. Isso acabou por provocar uma insurreição no bairro, queimando a escavadeira usada para a demolição. Marchas com milhares de pessoas e barricadas foram feitas por toda Barcelona. Uma solidariedade internacional se formou, com diversos protestos acontecendo pela Espanha e mundo, provando que a ação direta e a solidariedade são capazes de fazer o Estado retroceder, paralisando o despejo.
Centenas de pessoas do bairro e de outros movimentos ajudaram na reconstrução do espaço, arquitetos atestaram que a estrutura ainda estava sólida e não haveria risco de desabamento. Uma fila de pessoas de 800 metros ajudou a retirar os escombros de mão em mão até a porta da Administração do Bairro, como forma de protesto. A campanha de ajuda financeira prosperou e em 2 anos o espaço foi reconstruído.
O modo de organização se dá através das assembleias, há uma assembleia política e outra de gestão do espaço propriamente. As decisões são tomadas coletivamente, de maneira horizontal e visando consenso. Há chamadas abertas para participar das assembleias. Além disso, o espaço abriga diversos coletivos, iniciativas e apresentações. Há no espaço um bar/cozinha, sala para reunião e uma loja grátis. Na parte superior há quartos onde moram pessoas ocasionalmente.
A discussão sobre a Kasa Invisível e o livro Casa Encantada foi muito rica, as pessoas estavam muito interessadas em conhecer melhor o contexto brasileiro, principalmente no que concerne a interação com outros grupos, como a Teia dos Povos, de quem a Kasa Invisível é próxima e consideramos um dos movimentos mais avançados do Brasil. Ficamos muito felizes de sermos tão bem recebidos em um espaço referencial para a luta das okupas em todo mundo!
Logo depois da fala fizemos uma visita ao Can Battló, uma planta industrial de 11 hectares construída em 1878 e que ficou abandonada durante muitos anos. A Prefeitura de Barcelona dizia que iria dar uso ao espaço, mas permaneceu apenas uma promessa. Em 2011 os movimentos sociais do bairro deram 1 ano à prefeitura para tomar medidas de uso para o espaço criando uma plataforma e um relógio com a contagem regressiva. Passando 363 dias, sem nenhuma resposta, 3 mil pessoas marcharam até o espaço e o ocuparam. Enquanto estávamos visitando o espaço acontecia um grande seminário sobre as greves de inquilinos, reunindo pessoas de toda Europa e América do Norte.
O Can Battló tem enormes proporções, com um espaço para shows isolado acusticamente, espaço para exposições de ar, bar autogerido e que produz sua própria cerveja, cozinha comunitária, espaço para eventos, um espaço de escalada indoor feito com as madeiras do antigo telhado, espaço gráfico, editoras, ateliers de arte, espaços para coletivos, a maior biblioteca social da Catalunha (cerca 30 mil livros), ao lado dos galpões também há um grande playground, dentre várias outras coisas. Há também uma escola libertária, que recebe crianças a partir de 6 anos, e que atualmente é projeto que enfrenta a maior tentativa de pacificação através do Estado e dos partidos políticos. É um lugar cheio de vida, também organizado através de assembleias, um espaço com muitos e potência comunitária iniciado através da ação direta!
No dia seguinte (06/04), fizemos nossa fala no Ateneu Llibertari de Gràcia, um centro social com livraria, biblioteca, distribuidora e espaço para falas e exposição. O Centro Social também conta com uma revista. O espaço é muito tradicional, mas está nesse espaço desde 2016. Em nossa fala e questões seguintes a questão sobre a especulação imobiliária, os imóveis de Barcelona têm sido cada vez mais utilizados para Airbnb. Ressaltamos como a especulação no Brasil é predatória, levando a destruição de casas e espaços para a construção de prédios maiores, adensando e verticalizando a cidade. Foi uma discussão muito interessante e uma troca animada de experiências.
Depois fomos conhecer a Kasa de La Muntanyas, uma enorme okupa que desde 1989 está em um forte da força militar que patrulhava o Parque Guell. O forte construído em 1909, contava também com espaços para abrigar as famílias dos guardas. A Kasa de La Muntanyas é uma das okupas mais tradicionais de Barcelona contando com moradias, espaço para eventos e uma cozinha/bar. Quando chegamos terminava um debate sobre a especulação imobiliária contando com pessoas da Espanha e da Grécia. Barcelona é uma cidade com MUITAS okupas e uma programação variada e contínua!
Poucos quarteirões acima está a Blokes Fantasma, uma das okupas mais antigas de Barcelona, com 30 anos de idade (cujo grafite “Okupa Y Resiste” em seus telhados permaneceu gravado em todo o imaginário do movimento punk, anarquista e autônomo do sul global). Enquanto visitávamos acontecia um show de bandas punks e a rua estava tomada de gente, o selo-distribuidora anticomercial “Kontratätak” estava aberto com discos, zines e livros. Deixamos edições do “Casa Encantada” lá.
No domingo fomos ao cemitério de Barcelona, lá podemos visitar o túmulo dos revolucionários anarquistas Buenaventura Durruti, Francisco Ferrer e Francisco Ascaso, muitíssimo importantes. Haviam muitas fotos de combatentes mortos na revolução Curda em Rojava na lápide mantendo a memória e ligando as lutas.
Barcelona é uma cidade incrível, com uma vasta cultura de okupas e centros sociais autogeridos, para nós foi uma oportunidade de conhecer suas ocupações, os modos de organização, os sujeitos que fazem essa luta e poder falar um pouco das nossas experiências no Brasil.
Queremos agradecer a todes do Can Vies e Can Battló, principalmente Urió e Montse, pela enorme paciência e cuidado com que explicaram os espaços e um pedaço importante da luta de ocupações na cidade. Nosso muito obrigado também aos companheiros do Ateneu Libertário da Gracia. Ao Tomás do canal Moviments Sociais e a Júlia, da Kasa de La Muntanyas. Gostaríamos de expressar nossa enorme gratidão a Fabbi “Fumaça”, por nos recepcionar na okupa Las Vagas e nos auxiliar pela cidade, e também Meri & Robertinho pelas grandes ajudas nesses dias.