Chegamos no dia 20 de abril em Viena, na Áustria, para uma das visitas mais ricas culturalmente nessa turnê, cheia de música, arte e história. Nossa fala estava agendada para o dia 21 em uma das ocupações mais famosas e antigas da cidade, a Ernst-Kirchweger-Haus, ou apenas EKH. Porém, chegamos um dia antes para passear na cidade e, principalmente, para assistir o show de uma banda punk e anarquista canadense, o Godspeed You! Black Emperor – uma das bandas preferidas de nós três nessa viagem. A verdade é que aceleramos o passo rumo ao leste do continente justamente para cruzar nosso roteiro com o deles e ver ao menos dois shows.
A apresentação da banda aconteceu num espaço chamado Arena, que fica a poucos minutos de metrô do EKH, que foi onde nos hospedamos. Atualmente, algumas pessoas que moram e organizam o EKH também trabalham no Arena. Ambos os espaços são frutos das lutas dos movimentos autônomos e radicais de ocupação dos anos 70 e 80. Arena é hoje uma consagrada casa de shows, cinema e espetáculos, mas no início do século passado era um matadouro que foi desativado. Em 1976, após anos fechado, recebeu um grande festival itinerante de teatro, circo e cabarés. Ao final dos eventos do festival, o público ocupou o espaço e fez dos 12 prédios e seu terreno uma grande ocupação com centenas de pessoas morando, jardim de infância, casa de mulheres, universidade e teatro. O lugar se tornou referência e nome presente nas mídias tradicionais. Uma reintegração de posse resultou na demolição de grande parte dos prédios, mas a pressão popular garantiu que a prefeitura mantivesse o prédio principal e mais algumas estruturas. Hoje legalizado, é maior centro cultural e social alternativo da Áustria e já recebeu bandas grandes do rock mainstream e também foi cenário de filmes famosos como Antes do Amanhecer, de 1995. Segue sendo gerido coletivamente e sem fins lucrativos, voltado para apoiar a comunidade e projetos sociais.
Ainda no dia 20 de abril, visitamos o mundialmente conhecido museu Albertina (que também é cenário do filme Antes do Amanhecer). Lá pudemos ver grandes obras de surrealistas como Max Ernst, Egon Schiele, René Magritte, clássicos como Picasso, Monet e vários impressionistas e até Matta Clark. Albertina é um museu famoso pelo seu grande acervo de gravuras, porém apenas algumas cópias fac-símile de Albrecht Dürer, Rembrandt e Pieter Bruegel estavam em exibição.
À noite, o show foi simplesmente incrível. Som, imagem, performances, mensagem… Valeu a pena toda a correria e esforços para chegar a tempo em Viena e ver ao vivo a combinação de duas baterias, três guitarras, baixo elétrico, violino, violoncelo, contrabaixo e 4 projetores de filme 16mm misturados por uma banda punk, DIY, com mais de 30 anos de estrada e que deixa comendo poeira muita banda grande comercial. Recuperados do impacto, pudemos voltar para dormir no EKH para nossa fala no dia seguinte e também para aproveitar um pouco mais da cidade nas horas livres.
Nossa fala foi às 15 horas e a pequena sala de conferências do EKH estava cheia de membros da ocupação e da comunidade, além de muitos bolos veganos deliciosos. Uma nova ocupação surgia naquela semana e estava sob risco de despejo, então participantes falaram brevemente no início do evento chamando para uma vigília na madrugada seguinte. O debate foi rico e trocamos muitas experiências, especialmente sobre a relação entre ocupações, movimentos sociais, contracultural punk e cenas underground em geral, sua relação com vizinhança, a cidade, outros movimentos e novas gerações. Algo do que já experimentamos e debatemos, mas é sempre enriquecedor debater com um movimento e um centro social que resiste ao longo de décadas.
EKH foi ocupado em 1990 numa grande onda de ocupações que se seguiram à queda do Muro de Berlim e ao colapso do regime Soviético. O nome do espaço é uma homenagem a Ernst Kirchweger, combatente comunista radical na 2ª Guerra e sobrevivente dos campos de concentração nazista que foi morto em 1965 por um ataque neonazi durante um protesto antifascista. O prédio pertencia ao Partido Comunista Austríaco e ficou vazio sem o apoio de Moscou para financiar e sustentar o partido. Logo quando foi ocupado, abrigou membros dos movimentos anarquistas, antifascistas e autônomos, mas também imigrantes, refugiados, sem-teto. Atualmente, o prédio gigantesco abriga dois espaços de show (antigos teatros), bar, vários pisos com apartamentos para moradia, cozinhas comuns, lavanderia, um infoshop, biblioteca, arquivo, academia para musculação, artes marciais e escalada, oficinas de serigrafia, marcenaria e serralheria e também um sindicato socialista turco organizado por imigrantes e refugiados VTİD (Viyana Türkiyeli İşçiler Derneği).
Guiados por nossas anfitriãs, passeamos por corredores e salas que conservam a história do prédio desde sua construção, seu uso pelos nazistas nas décadas de 1930 e 1940, sua retomada pelo Partido Comunista durante o pós-guerra, a ocupação nos anos 1990 e a polêmica história de quando o Partido decidiu vender o prédio em 2004 para um empresário abertamente fascista e filiado a organizações de extrema-direita.
É surpreendente o número de diferentes espaços e estruturas. Algumas coisas chamam atenção, como o espaço principal de shows que exibe uma libélula de metal gigante, feita de metal e sucatas diversas, soldadas no melhor estilo Mad Max, suspensa no teto do salão que tem um pé direito de quase 10 metros. Uma amiga que organizou nossa fala ainda disse que em alguns shows ela cospe fogo pela boca! É surpreendente ver que uma comunidade radical na Europa, diferente de nós na América Latina, consegue não apenas ter estruturas básicas funcionando bem, como ter tempo, recurso e mãos para construir uma libélula de metal que cospe fogo e é maior que um ônibus apenas por diversão. Enquanto isso, lutamos por anos para levantar grana e achar alguém para nos ajudar a consertar um telhado tombado cheio de goteiras. A solução talvez seja trazer uma expedição de punks serralheiros para nos ajudar!
Infelizmente, nossa anfitriã, que mora e organiza no espaço há décadas, disse que não poderíamos tirar fotos da libélula porque não deixam tirar fotos lá dentro por segurança. Um critério que até entendemos quando estamos tirando fotos de pessoas ou estruturas sensíveis para uma ocupação. Mas um espaço de show provavelmente é público o suficiente e já foi fotografado infinitas vezes. Uma breve busca na internet foi o suficiente para achar uma foto do insetão para ilustrar nosso relato.
Logo antes do pôr do sol (hehe), seguimos para o último passeio pela cidade para performar um turismo tradicional. Guiados pela nossa nova amiga Liz, fomos para o parque Wurstelprater, que também é um cenário do filme Antes do Amanhecer (ok, talvez estivéssemos buscando esses locais de propósito). Fomos no trem fantasma, kamikaze e outras que não sabemos os nomes. Muito incrível ver o sol se pôr do alto desses brinquedos numa cidade tão bonita e cheia de história.
Finalmente poderíamos descansar e partir para ainda mais leste e, finalmente, chegar a Praga, na República Checa. Agradecemos a todo o coletivo gestor do EKH por nos receber e compartilhar tanta experiência e a nossa amiga Liz por organizar nossa fala, convidar amigues e nos mostrar a cidade e contar muitas histórias dos movimentos na cidade.
Legal demais o relato! Valeu por compartilhar!