Chegamos cedo à Ljubljana no dia 25 de abril e fomos tomar café da manhã com camaradas do Metelkova, uma vila ocupada que conta com múltiplas estruturas divididas por ruas internas, uma pracinha, espaço de show, infoshop, biblioteca, bar, cozinha comunitária, alojamento, ateliê, estúdio musical, pista de skate, esculturas bizarras, instalaçõe artísticas e muito mais coisas. Nossa apresentação estava marcada para o dia seguinte no A-Infoshop, que é parte da IFA (Internacional de Federações Anarquistas). Já conhecíamos alguns membros da ocupação e do infoshop de outros projetos e encontros. Um dos membros, inclusive, esteve em BH para uma apresentação na Kasa Invisível e, desde então, estabelecemos contato e apoio à distância entre os coletivos. Naquela noite nosso compromisso era apenas mais um show punk pra ver: o último concerto do Godspeed You! Black Emperor em sua tour pela Europa.
O show foi – mais uma vez – incrível e valeu o esforço para ver duas apresentações, rever toda aquela sonoridade, as projeções, ouvir músicas diferentes e ainda ganhar de presente um pedaço do filme 16mm destruídos pelo calor da lâmpada dos projetores ao final da apresentação enquanto os instrumentos são deixados no palco em meio a muita distorção e microfonia. O que rendeu uma bela moldura com posters, cartões, flyers, bilhetes de metrô e outras lembranças da nossa viagem.
Voltando ao Metelkova, o espaço é uma antiga vila militar da época do Império Áustro-Húngaro, que foi transformada em quartel do Exército Popular Iugoslavo. Com o fim da República Socialista da Iugoslávia, muitas estruturas foram abandonadas. Em 1993, toda essa área que estava destinada a ser demolida foi ocupada por um grupo de cerca de 200 pessoas para impedir a demolição e dar um uso social para eles. Desde então, o movimento vem cuidando e ocupando os imóveis do complexo com diversas atividades políticas, culturais, sociais e artísticas. Em 2021, Metelkova também foi um espaço que abrigou dezenas de delegados da comissão Zapatista em sua turnê pela Europa naquele ano.
No final dos anos 1990, Metelkova deixou de ser oficialmente um espaço de moradia. Como parte de um acordo com a prefeitura para não serem despejados, ficou combinado que o espaço não serviria de moradia fixa para ninguém e seria apenas um equipamento cultural e social comunitário. Tudo isso é parte de uma disputa e um jogo de poder que os governantes tentam forçar sobre o movimento e a ocupação para isolá-la como um espaço cultural inofensivo. Há também um hostel e lavanderia dentro da vila ocupada que, infelizmente, já não é parte do projeto e opera apenas nos moldes de qualquer empreendimento comercial. Inclusive, é possível ver caravanas de turistas fazendo passeios pelo bairro tirando fotos de tudo. No A-Infoshop, onde estávamos abrigados, há uma placa dizendo que aquele espaço não é um zoológico para que turistas tirem fotos… certa vez quando chegamos à sacada, turistas tiravam fotos da gente!
Nossa fala foi muito bem recebida e mais uma vez nos surpreendemos com o pessoal interessado. Como ponto negativo, impossível de não ser comentado, é a cultura de fumar em ambientes fechados dos europeus! Foi difícil falar com tanto cigarro e, o pior, o espaço onde dormiríamos era no sótão desse salão, onde toda a fumaça se concentra ao logo dos eventos. Dormimos e acordamos com roupas e peles completamente defumados.
O processo de reurbanização e gentrificação tomou o entorno do território ocupado, levando prédios estatais e comerciais, hotéis descolados, centros culturais e outras estruturas que não são de moradia. O objetivo é abertamente impedir que haja residências no entorno, nem uma vizinhança com algum senso de comunidade que possa se aliar e defender o espaço, deixando-o isolado e sendo visto como apenas mais um espaço cultural descolado da cidade. Um fato curioso é que o Metelkova tem como um dos vizinhos e, segundo nos disseram, persona non grata nos movimentos de ocupação é o escritor Slavoj Žižek, cujo rosto foi transformado em um dos grafites do local como forma de piada e ironia com sua relação crítica e inconveniente com o espaço. A piada nem sempre é entendida e seu rosto é mais uma atração para turistas tirarem fotos.
Em nosso dia livre, visitamos um outro espaço, PLAC (sigla para Zona Autônoma Participativa de Liubliana), que também trouxe boas reflexões sobre esses diferentes contextos de repressão e assimilação. Lá existe um grande salão para eventos, quintal, biblioteca, espaço para reunião, oficinas, loja grátis, um bar e cantina comunitários, onde pudemos fazer um lanche a preço livre, e uma grande varanda onde conversamos sobre o movimento de ocupações na Eslovênia. Participantes do espaço e de outras ocupações nos explicaram que a maioria das ocupações lá são voltadas para construir centros sociais e equipamentos culturais comunitários, uma vez que a moradia não é uma questão no país – ao menos de forma semelhante à situação no Brasil. A maioria das pessoas tem acesso a uma moradia de qualidade e não existe uma considerável população em situação de rua. Muito disso se deve às políticas de habitação da antiga Iugoslávia socialista. O cenário atual é que muitos dos avós e pais dos jovens de hoje são proprietários e herdeiros de imóveis daquela época, devido às políticas de habitação da antiga Iugoslávia. Mas hoje, com a abertura capitalista da economia e um urbanismo neoliberal, gerações atuais já começam a perceber uma maior dificuldade de acessar sua casa própria ou pagar um aluguel acessível. Sem contar os imigrantes.
Nossos camaradas contaram que PLAC foi ocupado em setembro de 2022 após o despejo de outro espaço conhecido como AT ROG (sigla para Fábrica Autônoma de Bicicletas), que servia de centro social, oficina de bicicletas e várias outras iniciativas usadas por jovens e pela comunidade em geral. O espaço foi originalmente uma fábrica de bicicletas no início do século XX, ficou vazio por anos e foi ocupado em 2006. Após 15 anos de intensa atividade, AT ROG sofreu um despejo em 2021 durante o inverno em meio a pandemia da Covid-19, para se aproveitar da desmobilização causada tanto pelo frio quanto pelo lockdown rígido imposto pelo governo, com toque de recolher e punições. Esse foi o primeiro de uma onda de despejos de centros sociais ocupados promovidos pela prefeitura, logo após o prefeito de esquerda pedir exoneração e a extrema-direita assumir o poder.
AT ROG foi despejado e em seu lugar a prefeitura e empresários implementaram projetos de habitação e uso que emulam uma “vida comunitária”, porém nos modos do capitalismo digital, da gentrificação e elitização gourmet de iniciativas criadas por movimentos sociais realmente de base. Atualmente, o empreendimento que substituiu a ocupação roubou até seu nome: Center Rog. E conta com muitas estruturas semelhantes: espaços para eventos, cantina, oficina de bicicleta. Tudo voltado para quem pode pagar caro por um estilo de vida alternativo!
Esse cenário e os exemplos práticos tanto do Metelkova e do AT ROG são temas de diversos estudos sobre ocupação, repressão e a tolerância aliada a uma neutralização da luta através de uma repressão disfarçada de tolerância. E servem para nós como uma reflexão fundamental sobre como é possível que o Estado imponha novos desafios estratégicos para a construção de alianças e autodefesa em um território, sem necessariamente passar pela repressão policial ou outras formas de violência. Isso é algo que, para nós no Brasil – especialmente em Belo Horizonte –, ressoa com o que acontece com movimentos sociais, ocupações de prédios, praças ou qualquer espaço público, quando são encorajados a assumir um caráter meramente de “expressão cultural”. Protestos se transformam em blocos de carnaval patrocinados por marcas de cerveja, centros sociais que se tornam pontos de cultura e não se multiplicam em outras formas de tomar território e expandir a autogestão, desafiando a lógica do capital, do trabalho assalariado e da propriedade privada da terra e dos imóveis urbanos.
Mais um encontro que nos deixou muito aprendizado e alianças reforçadas. Ganhamos alguns zines e publicações como “The Counter-Economy: Experiments of the Anarchist”, escrito por anarquistas do movimento de ocupação e outras lutas na Eslovênia, tratando das ocupações que visitamos e também da experiências de solidariedade e contra-economia anarquista desenvolvidas após a crise que sucedeu o levante de 2012-13 no país.
De lá seguimos em um voo para Atenas, porém, teríamos uma parada 22 horas em Belgrado, na Sérvia. Obviamente aproveitamos para contactar movimentos locais para apresentar nossa fala e ter onde repousar e comer por mais uma noite.